segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

#36: o email do juninho

Adalberto, meu caro

Quando você abrir esta mensagem eu estarei morto. Suicídio.

A porta do apartamento está aberta e o porteiro está orientado a deixar você entrar sem ser anunciado. Leve uma testemunha e evite mexer nas coisas da cena – melhor não dar sopa pr'o azar. Meu Bananère está sobre a pia da cozinha. Pode ficar com ele.

Não se apresse nem tente me ligar. Mortos não costumam dar muita bola a telefones tocando. Tenha paciência, amigo velho. Leia antes este meu bilhete de suicida e só depois faça o que deve ser feito.

“Mas logo agora que ele parece ter superado o caso da Nadita”, você deve estar pensando. Pois pense melhor. Nunca me matei por causa de mulher. Ao menos nunca nesta vida. Não seria agora que o faria.

O motivo é outro... uma história estranha, velhinho.

Quando a Nádia me deu aquele pé-na-bunda fenomenal, achei por bem não cancelar a viagem pra Marrocos. Você mesmo disse que eu precisava espairecer. Ridícula essa palavra. Espairecer o carái. Eu queria sofrer. Eu queria o deserto. Eu queria viajar porque viajar era mais sofrido. Todo castigo pra corno é pouco. Fui para o Marrocos.

Antes não tivesse ido, como diz o cancioneiro caipira. Ou ao menos não tivesse ido a Yasmina, onde um dia vi uma lamparina perdida na areia. Tipo a do Aladim, tá ligado? Toda empoeirada, como nas histórias fantásticas. Esfreguei a lâmpada. Não para melhor ver seu brilho, nem por simples reflexo automático. Esfreguei-a rindo por dentro, velho. Esfreguei a lamparina para que dela saísse um gênio, com aquelas calças coloridas e bufantes dos filmes antigos.

E não é que, mal começo a esfregar a lâmpada, dela vejo sair uma fumacinha besta? Esfreguei mais a lâmpada, e a fumaça continuou a sair e a se organizar na minha frente até virar... um gênio com aquelas calças coloridas e bufantes dos filmes antigos.

‘Doidei de vez, pensei. “Mas vam’bora que tá divertido”. Nada de químico no sangue. Você sabe que desisti dessas coisas há eras. A única explicação pr’aquilo era o solzão na cachola.

O tal do gênio começou a falar umas coisas ininteligíveis, naquela língua deles lá – Ahmed, ahmad, ahmud, patati, patatá. Foi difícil nos fazermos entender. O raio do gênio não falava português. Inglês ele falava, mas um inglês meio de Shakespeare, sabe como é? Thy, thou, essas coisas. De uma forma ou de outra, acabamos estabelecendo algum tipo de diálogo.

Você sabe qual era o pedido que eu tinha a fazer. Já havíamos discutido isso antes, quando crianças: eu queria que o gênio realizasse todos os meus pedidos dali em diante. Ele disse que esse não valia, apelou pr’uma exegese toda complicada e arguiu que o espírito da coisa era meio que conceder o pedido como gorjeta para quem o havia libertado, e que não tinha sentido nenhum sair da lâmpada para continuar cativo fora dela. Falou em razoabilidade, proporcionalidade, devido processo legal material, toda essa baboseira. Fiquei achando que, se eu conhecesse bem os recursos e alçadas daquele mundo eu poderia me ater a meu pedido original se propusesse o recurso correto. Sei quando um cara argumenta sem razão. Mas... como vc bem sabe que um péssimo acordo é melhor que etc., achei por bem não discutir – não em uma língua estranha, em um lugar estranho, com um tipo pra lá de estranho, e ainda por cima no meio de uma alucinação.

Melhor elaborar um bom pedido, pensei. Nadita foi o que me veio à cabeça. A Nadita vale um pedido (e como vale, amigo). Mas a Nadita é tanto sofrimento, mas tanto sofrimento...

Aí pensei na Mega Sena. Fiz o pedido com calma. Eu precisaria dominar a Mega Sena. E era necessário ser malaco com aquele gênio, senão ele me pregaria uma peça – escolheria um dia em que eu não jogaria (e vc sabe como eu sou esqueceido).

“Eu quero saber todos os números da Mega Sena, com antecedência ao sorteio.”

O gênio aquiesceu com a cabeça. Ele sabia o que era Mega Sena. Desconfio que ele entendia muito bem o português, e enrolava aquele inglês de tradução de Rei Tiago só pra mor de zoar comigo.

Voltei pro sumpaulio ansioso com a Mega Sena. Ansioso com um delírio do deserto, eu que sempre fui tão orgulhoso de meu ceticismo!

Dia 28 de setembro fui dormir com a expectativa de sonhar com os números. Nada. Passei o dia esperando uma dica. Nada. O relógio apontou seis horas e nada. As loterias fecharam e nada. Sete e meia da noite surgem os números na minha cabeça: 10-23-29-31-33-46. Anotei no meu caderninho. No outro dia, vejo no jornal o resultado da loteria: 10-23-29-31-46. Funcionava!

02 de outubro, sete e meia: 02-33-34-37-41-53. Bingo!

06 de outubro, sete e meia: 05-15-43-48-52 e 55.

E desde então, no dia do sorteio, após o fechamento de todas as casas lotéricas, meu pedido se realiza: sei todos os números da Mega Sena com antecedência ao sorteio. E não consigo apostar nos números!

Viver assim é impossível, amigo. Desculpe, mas vou partir desta. Diz pro povo que me matei por desilusão amorosa, que eu não conseguia viver sem a Nadita. Porque se você disser a verdade ninguém vai acreditar.

Não se esqueça de levar o Bananère. E planta meu bonsai em chão de verdade.

Tchau